Quando falamos sobre a história do empreendedorismo é comum nos referimos a homens. Sem dúvida, se analisarmos o nosso passado enquanto civilização é inegável as diferentes formas de tratamento dadas às mulheres, em geral designadas para o espaço doméstico e educação dos filhos. A construção desigual destes papéis sociais limitou por muito tempo a atuação feminina frente aos negócios. Nos choca, por exemplo, que há menos de cem anos atrás uma mulher seria mal vista ao tentar gerir um negócio por conta própria, principalmente se não viesse de uma classe abastada.
Sendo assim, até o século XX foram raras as empreendedoras que obtiveram sucesso, mesmo sob as rígidas condições do seu tempo. Porém, apesar de poucas, as mulheres da época também deixaram sua marca indelével no mundo dos negócios. Hoje conhecemos uma destas damas que enfrentaram não apenas a concorrência em seus empreendimentos, mas também o preconceito de um mundo que não as aceitavam como empresárias. Retornemos então até a França do início do século XIX para sabermos um pouco mais sobre a Madame Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin, a viúva que se tornou a rainha do Champagne.
Do lar às adegas
Nossa grande empreendedora no ramo de vinhos nasceu em 1777, no norte da França. Advinda de uma família de posses - seu pai era um industrial têxtil - a jovem Barbe-Nicole teve a chance de estudar e adquirir uma excelente formação, algo raro para as mulheres da época e destinada apenas às que fossem bem nascidas. Seus pais, porém, apesar de acumularem uma fortuna considerável, viviam sob a sociedade do Antigo Regime e não desfrutavam de uma série de privilégios concedidos apenas à nobreza. Esse fato levou o pai de Barbe-Nicole a ser um personagem ativo no movimento que mudaria o rumo da Europa e da organização social de todo o Ocidente: a Revolução Francesa.
Barbe-Nicole nos anos da revolução era apenas uma menina e fora blindada dos episódios mais intensos dos dez anos que mudaram a história francesa. Porém, mesmo vivendo sob uma nova ordem social, muitos costumes mantiveram-se. Um deles, certamente, diz respeito ao papel da mulher na sociedade europeia que, em linhas gerais, estava estritamente submissa ao marido. Desse modo, ao fim dos anos de revolução Barbe-Nicole estava com um casamento marcado, tudo arranjado entre o seu pai e o seu futuro sogro.
Como bem sabemos, a prática de utilizar o casamento como uma maneira de construir alianças e fortalecer laços entre famílias é tão antiga quanto a própria história humana. Sendo assim, os pais da jovem Barbe-Nicole viram no casamento de sua filha uma oportunidade de ampliar seus negócios. Dessa maneira, em 1798, com 21 anos, a futura empresária do champagne casou-se com François Clicquot. Porém, a vida em família não seguiria para o “final feliz” que as antigas histórias nos contam.
Seis anos após o casamento do então François, que nesse momento tinha assumido a vinícola do seu pai e comandava um próspero comércio de vinhos, acabou morrendo precocemente de febre tifóide, em 1805. Assim a doença levou o casamento de Barbe-Nicole ao fim e isso representava, para a grande maioria das mulheres, uma vida marcada pela viuvez.
Entretanto, por vezes são nos momentos de maior tensão e dor que revolucionamos a nossa própria vida. Com Barbe-Nicole isso aconteceu de maneira precisa, pois a jovem de 27 precisava não apenas garantir sua sobrevivência, mas também a dos seus filhos. Portanto, a necessidade a fez, em grande parte, sair do papel de esposa e dona de casa para tornar-se uma verdadeira empresária. Essa resiliência a tornou mais forte!
Entretanto, essa não foi uma jornada fácil. O primeiro desafio estava justamente em conseguir trabalhar. Graças a uma brecha na lei francesa, na qual afirmava que uma viúva poderia assumir os empreendimentos do seu falecido marido, Barbe-Nicole passou a ser a dona da vinícola Clicquot. Esse fato certamente chocou a sociedade francesa, uma vez que as mulheres eram proibidas não apenas de trabalhar, mas também não podiam votar, frequentar cursos superiores nem muito menos comandar de tão perto um empreendimento. Assim, com o apoio do seu sogro, a madame Clicquot passou a empreender e aumentar os lucros da vinícola, mas essa jornada estava longe do fim.
Madame Clicquot, superando as guerras
Outro grande empecilho enfrentado pela Madame Clicquot em sua vinícola foram as guerras napoleônicas. Como a história nos conta, após o golpe do 18 Brumário o general do exército francês Napoleão Bonaparte assumiu a França e estabeleceu o seu império. Suas pretensões e conquistas se estenderam até 1815, quando foi derrotado em Waterloo e foi aprisionado na ilha de Santa Helena. Mas qual a relação desse momento de disputas entre a França e a Europa e os negócios da nossa empreendedora?
Devido às constantes batalhas a produção e consumo de vinho caiu na França, uma vez que grande parte do contingente estava direcionado para as frentes de guerra. Além disso, a exportação do vinho para os países europeus também estava comprometida devido a péssima política exterior do general conquistador. Desse modo, a madame Clicquot chegou muito próxima da falência, principalmente após 1812 com a derrota francesa frente à Rússia. Porém, mais uma vez a tragédia abria um espaço sutil nos negócios que só o olhar de um verdadeiro empreendedor conseguiria ter.
Antes da guerra acabar, Barbe-Nicole percebeu que seus vinhos mais doces eram os preferidos no leste Europeu, diferentemente dos outros vinhos que circulavam na França. Percebendo uma chance de alavancar seus negócios e conquistar um novo mercado, a Madame Clicquot direcionou grande parte da sua produção para estes países, em especial para Rússia, principal combatente do exército francês. Assim, deixando grande parte de sua mercadoria estocada com outros comerciantes no país inimigo e com ordens para vendê-lo somente após a guerra, a madame Clicquot fez um movimento extremamente arriscado, pois poderia perder não apenas a última chance de salvar seu negócio, mas ser considerada uma traidora por furar o bloqueio comercial estabelecido por Napoleão.
Porém, com a derrota francesa e o fim da ofensiva contra a Rússia, rapidamente voltou-se à rotina pré-guerra e ao consumo regular de álcool por parte da população. Desse modo, quase como mágica, quando os copos voltaram a ser enchidos nos bares o vinho - que hoje conhecemos como Champagne - neles eram os da vinícola Clicquot. Em pouco tempo a viúva Clicquot, como também era conhecida, tornou-se uma das empresárias mais bem sucedidas do seu tempo, ganhando não apenas dinheiro, mas notoriedade no ramo da enologia.
Essa percepção do futuro lhe garantiu adentrar profundamente no mercado dos países do leste europeu, além de fortalecer sua marca com outros produtos circulando em mercados menos atrativos para a champagne, como a própria França. Essa façanha mostra um lado muito interessante da Madame Clicquot, pois ela não apenas foi capaz de enxergar a oportunidade frente o contexto em que vivia, mas de arriscar-se em um momento tão delicado para a sua empresa à beira da falência.
Devido a capacidade de assumir um risco tão alto, porém perfeitamente calculado, Madame Clicquot tornou seus vinhos populares em todo o continente, feito que até hoje reverbera em todo o mundo.
Após sua morte, em 1866, a vinícola passou por mudanças. Uma delas, que permanece até os dias atuais, é o nome da própria empresa. Atualmente a conhecemos como Veuve Clicquot, que em uma tradução direta significa “viúva Clicquot”. Seus vinhos, como uma pesquisa rápida nos mostra, podem variar entre R$ 337 até R$47.000, sendo assim um dos mais caros do mundo.
Considerando todos esses aspectos e ressaltando mais uma vez a sua força moral para desempenhar um papel tão distinto quanto o que a sociedade a pressionava a ser, não é a toda que Barbe-Nicole Clicquot encontra-se nessa lista de Grandes Empreendedores da História do mundo. Que seu espírito empreendedor e visão para conquistar - e dominar - o mercado nos deixem inspirados para darmos seguimento aos nossos negócios e fazê-los prosperar.
Bom trabalho e grande abraço.
Prof. Adm. Rafael José Pôncio
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