É
importante destacar a importância de saber o cerne da Cultura do Consumo, para
compreender como se estabeleceram e evoluíram as relações de consumo na
sociedade e, dessa forma, ampliar a análise sobre os fenômenos de formação do
mercado atual e antever os seus possíveis desdobramentos no futuro.
Inicialmente,
optei pela definição e pela fixação temporal da cultura do consumo,
estabelecidas pelo sociólogo americano Don Slater (2002). Para ele, a Cultura
do Consumo surgiu em meados do século XVIII e foi concebida como uma afirmação
de diferenciação social, tida como uma cultura progressista, moderna, livre,
racional.
De acordo
ainda com Slater (2002), o ‘consumo’ é um processo cultural, mas, a ‘cultura do
consumo’ é única, porque é o modo prevalecente da reprodução cultural,
desenvolvido durante a modernidade, no Ocidente. Isso implica salientar que a
cultura do consumo e a sociedade de consumo são áreas da vida social e
princípios institucionais que, na prática, não se encontram, podendo ser
desligados uns dos outros (BARBOSA, 2010).
Barbosa
(2010) elucida que uma sociedade pode ser de mercado, mas, em relação à questão
cultural, o consumo não é utilizado como principal forma de reprodução e
diferenciação social. Nessas sociedades de mercado, o grupo étnico, o sexo, a
idade e o status ainda representam o referencial do que deve ser usado e
consumido.
A
antropóloga Barbosa (2010) cita a sociedade indiana como exemplo dessa
distinção entre sociedade e cultura do consumo. A religião na Índia designa os
tipos de alimentos que devem ser consumidos, a forma de preparo e de ingestão.
Na ausência de uma ideologia de amor romântico, a escolha dos cônjuges pelos
pais também é direcionada pela religião. Essas práticas culturais atingem o
direito de escolha individual, quesito indispensável na cultura do consumo de
distintas sociedades ocidentais. Por isso, a necessidade de diferenciar o que
seja sociedade e cultura do consumo, como exploraremos nos tópicos
subsequentes.
Ao
retomar o significado de cultura do consumo, adotaremos a afirmação de Slater
(2002) que a identifica como o modo dominante de reprodução cultural
desenvolvido no Ocidente durante a modernidade. Mas qual foi a influência
vivenciada naquela época para justificar essa mudança no comportamento social?
Seria o início da produção industrial o responsável por incitar e estabelecer
novas relações de consumo, a partir do aumento da oferta e do acesso às
mercadorias?
Cultura do Consumo antecede a produção industrial
Conforme defende Slater (2002),
a ideia de cultura do consumo nasce antes mesmo da produção industrial e da
participação em massa no consumo. Nas palavras do sociólogo, a cultura do
consumo não é um efeito da modernização industrial e da modernidade cultural. A
cultura do consumo é parte da própria edificação do mundo moderno.
Ele confere à cronologia a conclusão
errônea de que a Cultura do Consumo sucedeu a industrialização. Essa “tendência
produtivista” em relação ao consumo foi contestada por meio de uma revisão
histórica, que afirma que uma “Revolução do Consumo” precedeu a “Revolução
Industrial”, ou, no mínimo, destacou-se como ingrediente fundamental do início
da era moderna ocidental.
Para justificar seu raciocínio, o
sociólogo chama atenção para a seguinte questão: como a industrialização
conseguiria progredir numa base capitalista, sem a existência preliminar de uma
demanda efetiva para produção? Sua conclusão é que a Cultura do Consumo é obra
de uma revolução nas relações de consumo e não consequência direta da Revolução
Industrial, como justifico a seguir.
O mundo ocidental e o acesso às mercadorias
No século XVIII, a expropriação de
mercadorias, decorrentes dos descobrimentos e da exploração colonial, permitiu
a introdução de mercadorias no mundo ocidental até então nunca vistas. O acesso
a produtos como tabaco, frutas, botões, brinquedos, café, louça para casa,
dentre outros, estimulou ‘novos’ costumes e ‘novas’ necessidades de consumo,
gerando a demanda associada de produção de novos bens de consumo. As xícaras
representam essa transição de comportamento. O objeto e os demais itens foram
inseridos nas casas para atender o consumo de bebidas quentes, como o café (SLATER, 2002).
Outro exemplo mais específico da
revolução do consumo - antes mesmo do processo de industrialização - foi a
transformação do lazer em mercadoria. A venda de ingressos tornou-se uma
prática para acessar eventos de caráter diversos, desde esportivo, bailes
comuns e de máscara, espetáculos teatrais.
Para Slater (2002),
a Cultura de Consumo se estabeleceu em razão da ideia impregnada de
modernidade. O moderno denota um mundo liberto da tradição, em que os sujeitos,
na condição de livres, podem, de maneira racional e científica, vivenciar
plenamente suas escolhas, por causa da oferta abundante de possibilidades
proporcionadas pela experiência do consumo.
Mas o que é Sociedade de Consumo?
Para determinado grupo de
intelectuais, a Sociedade de Consumo é aquela que pode ser definida por um tipo
de consumo, o consumo de signos. A essa vertente de pensamento, podemos incluir
Fredric Jameson, Zygmunt Bauman, Jean Baudrillard, dentre outros.
A esses autores está vinculada a interpretação comum de que a cultura do
consumo é a cultura da sociedade pós-moderna. As questões tratadas têm caráter
específico, como a relação íntima entre reprodução social e identidade; consumo
e estilo de vida; signo como mercadoria; críticas negativas ao consumo como
materialismo, superficialidade e perda de autenticidade nas relações sociais (BARBOSA, 2004).
Ao outro grupo de estudiosos, a Sociedade
de Consumo englobaria características sociológicas que ultrapassam as
fronteiras do consumo de massa e para as massas. Colin Campbell, Don Slater,
Pierre Bourdieu, Daniel Miller, Grant McCraken e Mary Douglas são alguns dos
nomes de intelectuais que trabalham com temas desconsiderados pelo debate
pós-moderno.
Dentre os assuntos investigados, estão: qual é a
importância do consumo na condição de um processo que intermedeia as relações e
as práticas sociais?; como o consumo se une a outras áreas da experiência
humana?; qual o significado do consumo?; quais são as razões que impulsionam as
pessoas a consumirem determinados tipos de bens? (BARBOSA, 2004).
Independente dos perfis de pesquisa, os autores produzem discussões que,
invariavelmente, se contrapõem e se complementam. Para elucidar como todas
essas contribuições podem esclarecer e aprimorar nossas análises, Barbosa (2004),
a partir das contribuições dos diferentes especialistas, distingue as
características e as discussões que podem ser mais associadas à sociedade de
consumo e as que preponderam em relação à cultura do consumo.
Os debates são: consumo de e para as
massas; sociedade de mercado; elevado índice de consumo individual; sociedade
capitalista; quantidade de descarte de produtos quase na mesma medida que a
aquisição; concentração de cultura material por meio de aquisição de produtos e
serviços.
Em relação à Cultura do Consumo, os
temas mais recorrentes são: a aquisição de bens e serviços como a principal
forma de reprodução e comunicação social; signo (símbolo) como mercadoria;
insaciabilidade; indistinção entre alta cultura (baseada nos padrões clássicos)
e baixa cultura (baseada nas tradições populares, com objetivos
mercadológicos); ideologia individualista; valorização da ideia de liberdade; a
palavra cidadania ingressou no vocábulo dos consumidores.
Sociedade de Consumo para Baudrillard
O consumo de bens e serviços está
inserido integralmente no comportamento humano e é tido como algo indissociável
da sociedade contemporânea, mas você consegue imaginar como todo esse processo
iniciou? Não existem dados históricos com exatidão de datas. Entretanto, a ação
descrita como sendo o princípio da sociedade de consumo se estabelece a partir
das relações de troca.
A “Sociedade de Consumo”, termo
convencionado por Baudrillard (2008), surge quando a motivação para
a aquisição de determinado produto muda. A relação de importância em razão da
utilidade do objeto transforma-se em uma relação de aquisição pelo significado
dado ao produto pelo sujeito. A modernização da relação de consumo se dá quando
o processo de indução às compras ocorre por meio de uma relação de símbolos,
para atribuir ‘valor’ ao produto, já que a sua pura e simples utilidade – valor
de uso – não é mais um condicionante.
A Sociedade de Consumo, portanto, para Baudrillard (2008),
designa toda e qualquer sociedade permeada pela economia de mercado, pelas
produções e consumos de massa, em que o capital tenha livre circulação. Ainda
nesse sentido, a funcionalidade do objeto não ocupa a condição primordial para
escolha do consumidor e, aliado ao sistema de produção industrial, tornou o
exercício de compra padronizado, rotineiro, imbuído de significados e
referências para estabelecer relações sociais.
O processo de formação da sociedade de consumo
O não consenso entre os historiadores em
relação à data e ao local de emergência do consumo moderno (ou da Revolução do
Consumo) ainda gera debates entre os grupos de intelectuais. Para Chandra Mukerji (1983),
o nascimento do consumo moderno foi na Inglaterra entre os séculos XV e XVI. Neil McKendrick (1982)
insere o momento histórico no contexto do século XVIII na Inglaterra e Rosalina
H. Williams
(1982), na França, no século XIX (MCCRACKEN, 2003).
McCracken (1988)
atribui a cada uma dessas datas o momento-chave da história do consumo e da
emergência da Modernidade (apud DUARTE, 2010).
Na abordagem de McCraken (2003),
a sociedade de consumo é consequência da Revolução do Consumo, que representou
muito mais que mudança nos gostos e nos hábitos de compra, foi responsável pela
alteração da cultura mundial na primeira modernidade e na modernidade. Essa
revolução do consumo que estruturou a cultura do consumo forma a sociedade de
consumo com novas percepções conceituais sobre espaço, sociedade, tempo,
estado, família e indivíduo.
O tipo de tecido, a cor, a forma da
roupa, a estrutura da casa e seus cômodos, a quantidade de servos a serem
explorados, tudo isso era constituído a partir de uma tradição imperativa que
indicava, a partir do status social (plebeu ou nobre, por exemplo), qual era o
comportamento ideal a ser desempenhado. Não havia vontade individual, porque
tudo estava relacionado e funcionava em torno de valores tradicionais.
A importância do consumo na mudança
social é que ele passou a integrar o comportamento humano. A sociedade
pós-tradicional é marcada pela pluralização, pela fluidez de valores,
interações sociais, escolhas individuais, recursos simbólicos que também
produzem a identidade social de um indivíduo (SLATER, 2002).
Nesse sentido, Baudrillard (2008)
afirmou que a Sociedade de Consumo é a sociedade pós-moderna e que vivenciamos
o tempo dos objetos. O autor ilustra sua afirmação ao considerar que, nas
civilizações anteriores, os objetos (monumentos e instrumentos) sobreviviam às
gerações. Atualmente, somos nós que presenciamos o nascimento, a produção e a
morte dos objetos.
Nos tempos atuais, a cultura não é mais
uma fonte exclusiva de expressão da organização social e também passou a
vigorar como bem de consumo. Por isso, podemos afirmar que a cultura do consumo
na sociedade de consumo é, em si, uma reprodução social.
Estudos de consumo e suas abordagens
De acordo com Barbosa e Campbell
(2006), nas ciências sociais contemporâneas, o consumo possui
significados positivos e negativos. O entendimento ambíguo dá-se em razão do
consumo ser compreendido como uso e manipulação e, também, como experiência.
Por vezes, a palavra está atrelada à compra, em outros casos, como esgotamento
ou mesmo realização.
Os autores ratificam que essa distinção
de compreensão se deve, também, por causa da etimologia do termo, sendo, no
latim, consumere, que significa usar
tudo, esgotar e destruir e, no termo inglês, consummation, que significa somar. O
significado da palavra consumo no Brasil ficou com a conotação do sentido
negativo por conta da influência filosófica socialista nas décadas de 80 e 90,
enquanto consumação; com sentido positivo, ficou restrita ao ato sexual.
O sentido negativo do consumo que se
sobrepõe ao positivo, historicamente, pode explicar a razão pela qual o tema é
tratado por intelectuais e acadêmicos e, ao mesmo tempo, pelo senso comum. Essa
ambivalência tende a progredir, à medida que o interesse do estudo do consumo
conceitua os sentidos negativo e positivo do termo, ao considerar, por exemplo,
tanto o consumo no sentido de esgotamento do meio ambiente, quanto também o de
adição, realização e criação de sentido.
Mas, como definir o consumo com tamanha
ambiguidade? Podemos conferir, nos próximos tópicos, se a resposta para essa
questão pode estar inserida na mesma miscelânea que dá origem ao termo.
O que é consumo?
Como revelam Barbosa e Campbell
(2006), o consumo, empiricamente, esteve presente em qualquer
sociedade, à medida que o uso dos objetos, dos serviços e dos bens materiais
sempre foi utilizado para reprodução física e social. Os autores exemplificam
que, mesmo ao suprir as necessidades físicas e biológicas, no sentido do seu
esgotamento, o consumo de objetos, serviços e bens materiais também são
utilizados para mediação de nossas relações sociais, para nos distinguir
enquanto grupos e pessoas. Da mesma forma, o consumo de objetos, serviços e bens
materiais contribuem para a manifestação dos nossos desejos, para ampliar nosso
autoconhecimento e, nesse sentido, constituirmos a nossa identidade.
Entretanto, teoricamente, os estudos
sobre circulação de bens e mercadorias nas ciências sociais não eram interpretados
dentro dessas três esferas de classificação, ao contrário, porque agregava-se
ao consumo um moralismo que subjugava o termo somente ao materialismo, à
aquisição de poder e à competição acirrada por status social. Esse moralismo
ainda permeia os estudos do consumo e dificulta, de acordo com Barbosa e Campbell (2006), até
mesmo a distinção entre análise sociológica e crítica social.
Campbell e as bases metafísicas do consumo moderno
Campbell (apud BARBOSA;
CAMPBELL, 2006) relaciona a metafísica ao consumo moderno. Essa
conclusão se deve ao fato do seu questionamento sobre a razão pela qual o
consumo conquistou tamanha importância na sociedade contemporânea. A pergunta
não está relacionada a por que consumimos, cujas respostas amplamente aceitas e
difundidas referem-se desde a afirmação de status social, satisfação de
necessidade, à busca pelo prazer, dentre outras.
Essa conexão – restrita ao consumismo
moderno, diferente dos padrões tradicionais de consumo – entre a metafísica,
descrita por Campbell
(2006) como os princípios básicos em relação a ser e a saber, e a
atividade de consumo, identificada como a rotina, a prática e o mundano, está
interligada como respostas as questões que os seres humanos fazem sobre a sua
condição de existência. A ligação entre a metafísica e a atividade de consumo
está no fato de o consumismo moderno estar mais propenso a saciar desejos do
que suprir necessidades.
O senso de identidade atual não é
nitidamente determinado como fora antigamente. Antes, a construção da identidade
utilizava como referência a filiação à determinada classe social ou a status de
determinado grupo. O nosso referencial na sociedade contemporânea é múltiplo e
a nossa auto definição está representada por nossos gostos e desejos, principal
preocupação do consumismo moderno.
O consumismo moderno na condição de
proliferação de escolhas é o processo atual de confirmação e criação de
identidade. A identidade para o especialista não deriva de um produto ou
serviço consumido, mas, sim, das nossas reações aos produtos; monitorando o que
gostamos ou não, poderemos descobrir quem somos.
Bom trabalho e grande abraço.
Autor: Adm. Rafael José Pôncio
Publicado em: 17 de abril de 2019
Especial: artigos no portal Administradores.com
Link fonte: https://administradores.com.br/artigos/o-que-e-cultura-do-consumo
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